Golpe de Flávio, silêncio dos indecentes e o livro 'A Anatomia do Fascismo'

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O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) ameaçou, sem temor nem reservas, o país com um golpe de Estado caso um aliado de seu pai seja eleito, indulte os golpistas e o STF decida o óbvio: a medida é inconstitucional. Nesse caso, afirmou, a única saída é a força. Só há uma maneira de o Executivo forçar o Judiciário a fazer o que não quer. E qual foi a reação?
Analistas, ou destroços morais afins, fizeram um esforço para oferecer uma leitura benigna do que afirmou o político. Ele estaria, segundo um dos delírios, apenas admitindo as dificuldades de haver um indulto.
O Globo, ao menos, fez um editorial. Todo cheio de cuidados, é fato, mas repudiou o despropósito. O texto não toca na palavra "golpe", a não ser para se referir aos eventos de 2022. E traz um trecho que tem lá a sua graça, certamente involuntária:
"Não ficou claro o que Flávio quis dizer com 'uso da força'. Eis sua explicação singela para as condições que levariam a tal desfecho: 'Estou fazendo análise de um cenário. Bolsonaro apoia alguém, esse candidato se elege, dá um indulto ou faz a composição com o Congresso para aprovar a anistia, em três meses isso está concretizado, aí vem o Supremo e fala: é inconstitucional, volta todo mundo para a cadeia. Isso não dá. Certamente o candidato que o presidente Bolsonaro vai apoiar deverá ter esse compromisso'"
"Não ficou claro?" Como não? Quem usaria a força contra o STF para impor a vontade do presidente? Como isso seria possível numa democracia? E, no mais, se fez silêncio, a não ser pelas vocações rastejantes que tentaram quebrar um galho para o senador. Sabem como é... Como a urgência está em inviabilizar a recandidatura de Lula, todo o resto é permitido. Inclusive flertar com golpistas.
Essa reação estupefaciente a um pré-anúncio de golpe me trouxe à memória algumas passagens do excelente "A Anatomia do Fascismo", de Robert Paxton. Querem ver? Seguem em vermelho:
"Especificamente, os líderes conservadores tiveram de decidir se deveriam tentar cooptar o fascismo ou empurrá-lo de volta à marginalidade. Uma decisão de importância crucial foi se a polícia e os tribunais deveriam obrigá-los a respeitar a lei. O chanceler alemão Brüning tentou conter a violência nazista em 1931-1932. Proibiu, em 14 de abril de 1932, as ações uniformizadas da SA. Em julho de 1932, contudo, quando Franz Von Papen substituiu Brüning no cargo de chanceler, ele suspendeu essa proibição, e os nazistas, excitados pela perspectiva de vingança, desencadearam o período mais violento da crise constitucional de 1930-1932".
COMENTO
Os regimes fascistas tiveram, sim, o apoio majoritário durante um tempo, mas só chegaram ao poder porque conquistaram setores da elite e da classe média com suas promessas de disciplina e ordem. Vejam ali os conservadores na esperança de que poderiam domesticar o monstrengo e usá-lo em favor dos seus interesses.
"Está equiparando o nazismo ao bolsonarismo?" Pergunta enjoada. Não equiparo. Extraio lições da história e evidencio a atração que exerce o autoritarismo em determinadas camadas. Mais ainda: sempre há aqueles que consideram que podem fazer dele um uso instrumental.
Mas um pouco de Paxton? Vamos lá.
"Na Itália, embora alguns chefes de polícia tenham tentado pôr freio ao comportamento transgressor dos fascistas, os líderes nacionais, em momentos decisivos, como já sabemos, preferiram transformar Mussolini a discipliná-lo. Os líderes conservadores de ambos os países [refere-se também à Alemanha] concluíram que aquilo que os fascistas tinham a oferecer superava em muito as desvantagens de permitir que esses rufiões se apossassem do espaço público da esquerda usando de violência. A imprensa nacionalista e os dirigentes conservadores de ambos os países foram consistentes em seu uso de dois pesos e duas medidas no julgamento da violência fascista e da violência de esquerda".
E ainda:
"A colaboração conservadora na chegada do fascismo ao poder se deu de diversos modos. Em primeiro lugar, havia cumplicidade com a violência fascista contra a esquerda. Uma das decisões mais fatídicas, no caso alemão, foi a suspensão da proibição das atividades da SA, assinada por Von Papen em 16 de junho de 1932. Os 'squadristti' de Mussolini seriam impotentes sem a vista grossa e até mesmo a ajuda direta da polícia e do Exército italianos. Outra forma de cumplicidade foi a concessão de respeitabilidade. Já vimos que Giolitti ajudou Mussolini a se tornar respeitável ao incluí-lo em sua colisão eleitoral, em maio de 1921. Alfred Hugenberg, executivo da Krupp e líder do partido que competia de forma mais direta com Hitler, o Partido Popular Nacional Alemão, alternava entre atacar o arrivista nazista e aparecer em comícios a seu lado. Um desses comícios realizados em Bad Harzburg, no outono de 1931, levou o público a acreditar que os dois haviam formado uma 'Frente Harzburg'. Mas, enquanto Hugenberg ajudava a tornar Hitler mais aceitável, os filiados do DNVP se bandeavam para os nazistas, tão mais excitantes."
Se o mecanismo lhes parecer familiar, não é mera coincidência:
"Os conservadores resolveram jogar alto, quando um acordo com o partido fascista bem-sucedido passou a aparecer possível: o poder com uma base de massas se tornou, então, uma meta alcançável a eles também. Chegou a haver competição entre os conservadores que tentavam conquistar o apoio da totalidade ou de parte do movimento fascista (alguns deles tentando apoderar-se de uma ala ou da base). Na Alemanha, Schleicher competia com Von Papen, ambos tentando atrelar o arisco cavalo nazista a sua carroça -- como Giolitti competira com Salandra na Itália".
ENCERRO
Se notarem, não há mais conservadores propriamente no Brasil que possam se livrar do peso do bolsonarismo, daí que os absurdos de Flávio tenham provocado um ruidoso silêncio.
Na própria imprensa, ele não é tratado como alguém que ameaça o país com um golpe. Seria só mais uma das vozes aceitáveis do "conservadorismo" à moda da casa. De tal modo se alargou o conceito que um golpista é só parte do cardápio político que se oferece ao público.
Relembro esses trechos de Paxton porque essas escolhas têm história. Como sabemos, no momento, os ditos "conservadores", inclusive os da imprensa, resolveram fazer uma dobradinha com o bolsonarismo contra, ora vejam!, o Supremo, onde estaria a verdadeira ameaça ao que entendem ser a ordem liberal.
Nada disso, como se nota, é novo. Paxton observa que os conservadores, então, desprezaram quaisquer outras alianças e "optaram pela alternativa fascista". E acrescenta: "Os líderes fascistas, de sua parte, conseguiram a 'normalização' necessária ao compartilhamento do poder. Não tinha que acontecer assim".
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